A energia do lixo

Lixo é um assunto desagradável, seja pelos problemas ambientais inerentes ou pelo enorme impasse que os municípios brasileiros, principalmente os grandes centros urbanos, enfrentam ao tratarem da disposição final de seus resíduos. Em São Paulo, no entanto, o governo municipal colocou em debate a questão ao inaugurar, nos últimos dias de janeiro, o que talvez venha a ser uma solução para os danos causados pelo lixo: a termoelétrica a biogás do Aterro São João.

O biogás é aquele formado nos aterros sanitários pela decomposição da matéria orgânica armazenada. Sua composição varia com o tipo de material existente, mas o gás metano (CH4) e o dióxido de carbono (CO2) são seus principais constituintes. Segundo o engenheiro mecânico Adriano Viana Ensinas, que em 2003 realizou um estudo sobre a geração de biogás no aterro sanitário Delta, em Campinas, a porcentagem média de metano e CO2 no gás é de 50%, cada. Em quantidades bem menores, ainda aparecem enxofre, monóxido de carbono, amônia, hidrogênio, nitrogênio e oxigênio.

Com tantos constituintes tóxicos, é fácil imaginar o problema que o biogás representa nos aterros. O uso de aterros sanitários, embora seja a alternativa mais viável de armazenamento e tratamento do lixo no Brasil – devido, principalmente, ao seu baixo custo, à facilidade de execução e à grande capacidade de absorção de resíduos – é apontado como uma das maiores fontes de metano liberado na atmosfera, contribuindo em grande medida para o agravamento do efeito estufa. Segundo dados do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), os aterros são responsáveis por cerca de 5% a 20% do total de metano liberado por fontes com origem em atividades humanas.

Além dos danos causados pelo agravamento do efeito estufa, lembra Ensinas, o biogás gerado pelos aterros e “lixões” pode representar riscos para o ambiente local quando não controlado devidamente. Nestas situações, ele pode migrar lateralmente para as áreas mais próximas ou mesmo emanar pela superfície, causando prejuízos à saúde humana e à vegetação, decorrentes da formação de ozônio de baixa altitude, ou à exposição de constituintes do biogás que podem causar câncer e outras doenças que atacam fígado, rins, pulmões e o sistema nervoso central. Isso tudo sem falar em seu forte cheiro, o que, segundo o engenheiro mecânico, pode causar distúrbios emocionais.

O lado bom dessa história, é que o metano pode ser coletado e utilizado como fonte de energia, justamente a técnica usada nas usinas termoelétricas instaladas em aterros. Nesses locais, o biogás pode ser usado para geração de calor, trabalho mecânico e eletricidade. O seu uso direto pode servir para abastecimento de uma rede local de gás canalizado ou para aplicações específicas em processos industriais, servindo como substituto de derivados do petróleo.

Usinas paulistanas

Assim como em outros projetos do Brasil, a instalação de usinas em aterros de São Paulo levou em conta o grande potencial de geração de biogás nos locais. O que, trocando em miúdos, significa a enorme quantidade de lixo armazenada. Todos os dias, os paulistanos produzem nada menos do que 13 mil toneladas de lixo, aproximadamente. Todo esse material foi enviado, durante décadas, para os dois principais aterros da cidade: o Bandeirantes, que funcionou por 28 anos na zona oeste; e o São João, que funcionou por 15 anos na zona leste. Ambos chegaram à sua capacidade máxima em 2007 e ganharam usinas em seus últimos anos de funcionamento.

Com uma área de 150 hectares e cerca de 35 milhões de toneladas de lixo estocada, o Aterro Bandeirantes foi o primeiro a ter uma usina. Instalada em 2003, a termoelétrica tem capacidade de geração de 170 mil MW/h por ano. Lá, estão alojados 60 canudos verticais que penetram o aterro e captam os gases. O material é escoado por 35 km de tubulações até a estação de beneficiamento, onde são comprimidos e conduzidos a moto-geradores, para, então, ser feita a queima do metano. A combustão permite a transformação da energia mecânica em elétrica, que é diretamente transferida para a rede de distribuição da Eletropaulo. A produção do Bandeirantes já abastece prédios administrativos do Unibanco e também é comercializada no mercado livre.

No aterro São João, o processo de implantação da Usina de Biogás – inaugurada oficialmente dia 25 de janeiro deste ano – começou em junho de 2007, com o início da operação de descontaminação do metano. Em seus 80 hectares e cerca de 26 milhões de toneladas de lixo estocadas, foram instalados mais de 30 km de tubulações especiais para a coleta do gás e construídos 126 poços conectados. A capacidade da usina é de 200 mil MW/h por ano, o equivalente ao consumo de uma cidade de 400 mil habitantes.

Tanto a Unidade de Geração de Energia de Bandeirantes quanto a de São João estão entre os cinco maiores projetos do mundo de controle de gases que causam o efeito estufa a partir do reaproveitamento do lixo. Aprovados pela ONU como Mecanismos de Desenvolvimento Limpo (MDL) e dentro das normas do Protocolo de Quioto, os aterros podem, com isso, vender seus créditos de carbono aos países desenvolvidos que têm metas de redução de emissão de gases-estufa.

Segundo a Biogás Energia Ambiental, a concessionária contratada pela prefeitura para fazer a captação de gás, só o projeto no aterro Bandeirantes já deixou de emitir 2 milhões de toneladas de CO2 equivalente. De acordo com o diretor de desenvolvimento de uma das acionárias da Biogás, Manoel Antonio Avelino, até 2012, o Bandeirantes deixará de emitir 8 milhões de toneladas de CO2 equivalente. No aterro São João, a expectativa de geração de créditos de carbono é de 800 mil toneladas por ano, volume bem próximo ao que foi negociado no primeiro leilão de créditos de carbono da Bolsa de Mercadorias & Futuros, realizado no final de setembro de 2007.

Contestações

Apesar de, à primeira vista, se apresentar como uma boa saída para o problema do lixo, a instalação de usinas de biogás nos aterros sanitários do Brasil é vista com ressalvas por pesquisadores. Para o professor Waldir Antônio Bizzo, doutor em engenharia mecânica e orientador de Adriano Ensinas em sua dissertação de mestrado, a medida não pode ser encarada como única solução. Segundo ele, as questões relacionadas à produção de resíduos sólidos têm de ser tratadas com radicalidade. “A única coisa que ela faz [a usina] é evitar a emissão de gás de efeito estufa. O melhor mesmo seria não se produzir lixo, mas, como não conseguimos não produzir, que seja produzido pouco, que se recicle o máximo”, diz.

Vale lembrar que, em São Paulo, apenas cerca de 1% do lixo é reciclado, sendo que a cidade teria potencial para reaproveitar cerca de 35% de seus resíduos sólidos. Diante deste cenário, o professor reafirma suas convicções. “Em um sistema civilizado, a porcentagem de reciclados é muito maior. No Japão, por exemplo, existem de 10 a 15 tipos de coletas. O aterro e a usina acabam sendo, para um país pobre como o nosso, a opção menos ruim”, defende.

Quem também não vê com bons olhos a propaganda positiva que se fez em torno da instalação das usinas na capital paulista é o presidente da Comissão Especial de Estudos do Lixo de São Paulo, vereador Paulo Frange (PTB). Segundo ele há uma série de irregularidades por trás das iniciativas. Entre elas estão a existência de Licença Ambiental Precária nos aterros e a contaminação de vários dos poços abertos nas usinas.

“A idéia [da usina] é inteligente, mas não detemos toda a técnica com segurança. À medida que se extrai o gás, vai causando uma instabilidade no terreno e podem ocorrer desabamentos”, diz o vereador, em referência ao desabamento ocorrido no aterro São João em agosto passado. Segundo ele, as cinco estações de transbordo da cidade também operam irregularmente, pois não possuem o inventário epidemiológico da área. Procurada pela reportagem de O Eco, a assessoria da prefeitura negou todas as acusações e afirmou que os ataques do vereador Frange fazem parte de sua propaganda para tentar a reeleição no pleito deste ano.

Discussões políticas à parte, as termoelétricas alimentadas por metano parecem ser uma boa alternativa – ou a “menos ruim” – para os aterros. Enquanto o Brasil não acordar para a importância da reciclagem e para a produção controlada de seu lixo, a instalação de usinas movidas a gases de efeito-estufa continuará a ser a notícia menos desagradável a ser dada quando o tema do lixo estiver em pauta.

Ano da Publicação: 2010
Fonte: http://www.oeco.com.br/reportagens/2170-oeco25960
Autor: Rodrigo Imbelloni
Email do Autor: rodrigo@web-resol.org

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