O conceito que hoje temos de classe média é um amálgama de visões construídas ao longo dos últimos séculos; algumas por demais preconceituosas – a visão européia é particularmente estigmatizada, assim como a brasileira – e algumas por demais românticas (vide o american way of life). Recentemente, estudos deram conta de que, na Grã-Bretanha, os cidadãos apresentam forte resistência a se classificarem como parte da classe média, preferindo o termo working class, ou “classe trabalhadora”. Enquanto isso, os americanos em geral orgulham-se de sua origem essencialmente burguesa e não fogem da categoria.
A verdade é que, independentemente da maneira como encaramos o rótulo, a maior parte de nós está circunscrita dentro dele. Segundo a pesquisa “A Nova Classe Média”, dirigida pelo economista Marcelo Néri (FGV), a quantidade de famílias que podem ser encaixadas na classe média (tomando como parâmetro uma renda mensal de R$ 1.064 a R$ 4.591), subiu de 42,26% para 51,89% entre 2004 e 2008. Se considerarmos que o pesquisador coloca como pertencentes às classes A e B qualquer família com renda acima de R$ 4.591, é até mesmo possível questionar a possibilidade de essa percentagem ser ainda maior.
Essa ascensão não aconteceu, naturalmente, do dia para a noite. É o resultado de um longo processo no qual modificaram-se as relações sociais, comerciais, políticas, de trabalho e até mesmo religiosas. Desde o início da Era Moderna, assistimos a um crescimento rompante deste “homem do meio”, que vive de vender sua força de trabalho nas cidades e participa da vida econômica não mais apenas como patrão ou empregado, mas também como consumidor, como agente transformador na ordem estabelecida.
O petróleo foi para a história da classe média um divisor de águas, pois através da eficiência energética a Revolução Industrial atingiu proporções que até então permaneciam além de qualquer expectativa. Foi este o primeiro momento da história em que a demanda virtualmente deixou de existir, ocasionando uma queda vertiginosa nos preços e a necessidade de impulsionar uma classe consumidora.
Assim, o antes restrito grupo de burgueses – o qual já constituía a classe consumidora das cidades – passou a ter a seu lado a companhia da classe operária. O direito trabalhista, que antes funcionava para manter a ordem, passou a trabalhar no sentido de construir esta nova classe. Consolidaram-se as férias, o horário de almoço, os salários adicionais. A classe média, assim, tornava-se de fato o centro da sociedade, e com ela nascia verdadeiramente o consumo.
O início do século XX conheceu a primeira grande febre de consumo. O Ford-T, primeiro automóvel produzido em massa, tornou-se sucesso absoluto nos EUA ao vender – entre 1908 e 1927 – mais de 15 milhões de unidades. A classe média vislumbrava pela primeira vez o sonho de uma vida completamente nova; parecia possível trabalhar e viver bem, era tudo uma questão de conseguir aparelhos que economizassem o tempo. Foi a época da eficiência técnica, mas na qual ainda se cultivava a velha cultura de conservação, fruto de uma história de guerras e privações que a nova classe “dominante” não poderia esquecer.
Essa cultura, disso sabemos muito bem, veio a ruir através do século XX, com a massificação cada vez mais intensa de todos os aspectos da vida humana (até mesmo as artes foram massificadas). Tecnologia de ponta, praticidade e facilidade de aquisição passaram a ser as expressões de ordem.
Como a tecnologia evolui a cada instante, a durabilidade tornou-se uma questão menor, assim como a própria capacidade do produto de exercer suas funções. Se uma geladeira tem uma televisão embutida, já não se espera que ela gele tão bem. Se um celular tem câmera e emite os mais variados sons e luzes, talvez nem mesmo seja necessário que ele tenha excelente recepção ou elevada durabilidade (a prova d‘água ou resistente a choques).
O sonho de consumo do homem contemporâneo é consumir. Já não importa mais o que ou até mesmo por quê. Na Índia, o recém-lançado carro de 2 mil dólares levará as camadas mais baixas da população a um verdadeiro delírio, aliviando o governo da sua obrigação de garantir um sistema eficiente de transporte público. O povo, assim que puder, substituirá suas bicicletas e motocicletas sem pensar duas vezes, assim como não pensarão duas vezes também no momento de comprar um novo exemplar (talvez de uma nova cor) assim que o primeiro perder suas calotas, para-choques e outras peças coladas. O fenômeno que já tomou forma no Japão e Nova York, de aparelhos semi-novos que são abandonados ao ar-livre, já começa a se alastrar pelo terceiro mundo. O ciclo do produto já não é o de sua durabilidade física e qualidade mas sim de permanente inovação e substituição.
O preço deste desejo, desta febre de consumo que atinge às classes médias, está sendo pago no dia-a-dia. Vive-se cada vez mais e têm-se cada vez mais; por outro lado, vive-se cada vez pior e com posses cada vez mais abstratas. O resultado desta equação é lixo, poluição e violência. O homem contemporâneo coloca seus padrões inventados de vida acima de seu vasto habitat, e o ciclo de seu lixo em competição com o ciclo da natureza, no entanto não é capaz de perceber que esta batalha está sendo perdida na medida em que estamos trocando recursos naturais por lixo. Quanto ao planeta sabemos que ele se renovará quando for necessário; quanto à humanidade, não temos tanta certeza.
Ano da Publicação: | 2010 |
Fonte: | http://www.artigonal.com/meio-ambiente-artigos/trocando-recursos-naturais-por-lixo-917426.html |
Autor: | Rodrigo Imbelloni |
Email do Autor: | rodrigo@web-resol.org |