A rua como lugar da patologia social
João Inácio Kolling
21/05/2002 –
16:58
A rua é um elemento central da edificação da cidade
moderna. Nenhum espaço é mais evidente do que a rua para viabilização da diferenciação
social e do antagonismo que se manifesta tanto na qualidade de algumas ruas em relação a
outras, quanto no que ladeia as ruas: casas miseráveis e mansões tão suntuosas que até
afrontam a clássica diferenciação das classes sociais.
A simples classificação de centro, periferia, vila, bairro residencial, bairro operário,
favela, etc. revela as profundas desigualdades sociais que ali se manifestam, seja na plena
e irradiante luz solar do dia, na luminosidade romântica do luar, ou na mais abscôndita
escuridão da noite.
As últimas décadas foram particularmente favoráveis para separar de forma evidente e
preclara o distanciamento de lugares, formas e sujeitos que não querem perder nenhum
privilégio conquistado e, somente favorecer, na melhor das hipóteses, os que são da sua
categoria, a fim de que se constituam em grupo coeso. É assim que se ostenta o lugar dos
funcionários de banco, dos dentistas, dos médicos, dos comerciantes, dos agrônomos, dos
advogados, enfim, das entidades que se auto interpretam com status de superioridade nos
bens simbólicos da cultura estabelecida.
Bela ilustração da rua, em relação ao distanciamento de status segundo a velha concepção
platônica da aristocracia para o sonho dos pobres e inferiorizados, é o dos incontáveis
painéis luminosos anunciando doutores em vez de bacharéis e licenciados. Não é isso um abuso
de autoridade que sustenta e aumenta as distâncias entre os sujeitos? Se alguém atribui a si
mesmo título acadêmico superior ao que possui, não estará repetindo o velho coronelismo da
famosa expressão do: Sabe com quem está falando?, auto-atribuição que dá o direito de
espoliar outros em nome de um título que confere poder? Com o título acima da condição
acadêmica real, ocorre uma autoproclamação do direito de explorar, sugar, enganar e
subjugar. Uma vez concebido como inferior, pode o outro ser explorado e submetido aos
interesses de quem se considera superior. Daí a condição de poder sugar seu trabalho, seu
corpo, seu prazer.
Afinal, nesta condição de superioridade, não há necessidade de reconhecer a alteridade, o
diferente.
Encarar o outro como diferente, significaria aceitá-lo nem como mais e nem como menos: é um
ser humano que tem o legítimo direito de ser respeitado porque é diferente.
Se sua rua, de um lado separa todos estes mundos que se engendraram nesses últimos anos, ela
passa a constituir-se, também, num outro e novo espaço, o espaço do consumo, da eletrônica,
telemática e da visualização de todo tipo de combinações aleatórias que possam levar ao
aumento de desejos. Assim, à medida que desaparecem as tradicionais vinculações, como
partido, classe, ideologia, religião, a mistura desordenada acaba criando um mundo tão
hiper-real que a rua já não comporta ordem e elementares regras de eficiência. Ali tudo se
atropela em função das grandes promoções, dos shows, dos mercados, dos anúncios, e dos
encantamentos pelo que se encontra atrás das vitrines. O prazer haurido do que os olhos
podem visualizar e que levem os indivíduos a deslizar, a patinar, se não é no real das
e
Ano da Publicação: | 2002 |
Fonte: | sonoticias.com |
Autor: | João Inácio Kolling |
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